A ferida que toco com minhas próprias mãos reflete a minha alma desnuda e machucada. Depois de muito tempo, entendi que os pedaços da minha própria pele são mais agradáveis de tocar que o interior adoecido da minha própria história. Sinto-me forte e corajosa ao lidar com dores físicas porque minhas brechas e vales emocionais me sufocam muito além do que posso lidar. Esse é o motivo de me sentir impotente e vulnerável nesse momento.
Cicatrizar minhas próprias dores nos pequenos pedaços do meu corpo físico, parece uma tentativa de vencer a mim mesma, porém eu não me sinto mais nem forte nem corajosa como antes. Não estou mais no controle do meu próprio sangramento. Eu me machuco até sem perceber! Na minha pele, via-me incapaz de estancar o sangue das minhas próprias dores emocionais. Tudo ficou exposto e desconexo, sinto-me aniquilada no momento.
Não gosto dessa sensação de fracasso nem no jogo nem na vida, por isso, como defesa, tenho meus próprios mecanismos secretos. Penso que se não sou capaz de me dominar internamente, tento, desesperadamente, controlar por fora aquilo que por dentro está caótico e desestruturado em mim. Se eu não gosto do que vejo por dentro, na maior parte do tempo, fujo para não doer.
Gosto da sensação de entorpecimento, enfraquecer a consciência do eu tem sido sobrevivência, porém, ignorar aflições também é uma forma de morrer aos poucos e fugir, não funciona eternamente. Tamponar dores não quer dizer que estamos no controle, essa é a nossa fantasia, infelizmente é ilusório e não tem sustentação real. Aprender a chorar e não reclamar abrigo é um aprendizado lento e doloroso; sentimentos à flor da pele ardendo é mais fácil.
Acho que é um boicote. Sinto-me no controle quando causo meus próprios tropeços ou feridas. Penso que sei qual a profundidade do corte e quanta dor posso suportar. Fantasio que estancando o sangramento eu posso esconder das outras pessoas. É um mundo só meu, um espaço onde minhas marcas, cicatrizes e cada corte emocional que tenho revelam meu próprio sistema sintomático de satisfação. No corte cirúrgico da navalha, ultrapassei limites da minha própria sanidade e me deparei com as nuances de territórios antigos que não se explicam facilmente em palavras, só consigo sentir, e doí continuamente.
Aqui nesse universo, um tanto quanto sombrio e louco, reconheço-me na tentativa desesperada de me encontrar, mesmo estando à beira do caos. Os rótulos nem sempre são justos com os diferentes. Me sinto única em minha dor. Não consigo abandoná-la porque ainda estou totalmente identificada com ela, como se gritasse minha história, por mais que eu me esconda em uma cortina de normalidade, encoberta através da minha roupa, o tecido frio que me toca arde sobre as cascas e rachaduras que estão por dentro. Não quero mostrá-las a ninguém. Eu me escondo nessa versão acorrentada de mim e não consigo vomitar esses tormentos que me corroem e ferem todos os dias, um após o outro. Eu dissimulo, oculto para mim e para o outro o que me corta por dentro e por fora, mas a roupa cobre.
Já li muitas vezes no meu berço psicanalítico favorito que toda compulsão é fruto de dor, falta e desamparo. Um grito que rompe, rasga e fere, mas ninguém sabe ao certo de onde vem. Não que nada nem ninguém me toque ou me julgue. Nesse processo doloroso, a ferida está aberta, longe de ser fechada. Não se fecha a porta facilmente sem deixar algo lá dentro. Como em um quartinho de sucata que não se mexe há muito tempo. Restos e rastros de quem somos ou fomos, sempre nos mostram um pouco do que seremos. Um magnetismo atávico que levamos sempre conosco, nossas próprias marcas de existência, e, como criar um eu mais saudável e menos desarmônico? Juro que gostaria de ter essa questão bem respondida.
Onde me encontro agora, não quero falar ou ouvir sobre mim mesmo dessa forma. É pesado, profundo e difícil de encarar as pessoas sem conseguir explicar nada de como ou sobre quem eu tenho sido agora. Não existe nada sensível demais ou de menos, apenas medo de que nunca se fechem as dores e segredos ocultos nas feridas abertas e escondidas sob disfarce. Pergunto-me quantos por aí não caminham escondidos suprimidos de si tanto quanto eu? Em um mundo onde não posso mostrar fraqueza ou desajuste? Quantos cortes ainda terei que esconder?
A vida e suas cobranças eternas e infindáveis me geram muita culpa e sofrimento. Nunca acho que consegui ser boa o bastante e não aceito o suficiente, isso me afeta, sou reativa o tempo todo. Oscilo entre gritar com as pessoas ou não falar com elas e cobro perfeição a mim e aos demais. Tudo isso me causa danosas consequências, pois, não consigo me relacionar de forma amigável nem com minha própria família, sinto que eles não me entendem e todos estamos adoecendo. Esses meus pedaços estão excluídos e perdidos, essa inconsciência de quem eu sou me faz questionar onde estará o meu socorro ou minha salvação. No entanto, meu espírito grita, ora e geme em meu lugar… intercede por mim em nome de Cristo junto ao Pai. Agora eu não estou mais sangrando escondida, as vestes se rasgaram aos pés do altar. Sim, a ferida está aberta, só que agora todos sabem!